Santa vocação secular
Há 500 anos houve um movimento cristão conhecido como Anabatismo, ou da Reforma Radical. Eles entendiam que desde a Queda o mundo estava sob o governo do Diabo, e que o cristão deveria então resignar-se a viver evitando tudo o que há na cultura secular, separando-se completamente dela (alienando-se) até que finalmente fosse levado ao Reino de Deus, onde Deus governa eternamente. A realidade espiritual do mundo estaria dividida entre as esferas sagrada (Igreja, onde Deus governa) e secular (mundo, onde o Diabo governa). Nessa perspectiva dicotômica, emprestada do dualismo platônico, todo trabalho secular não passaria de algo que o cristão pratica apenas como uma obrigação com vistas ao sustento de sua família e à participação material na pregação do Evangelho, através do sustento da igreja e de suas santas instituições.
Mas esse entendimento despreza o fato de que Jesus ensina que o seu Reino já está "em nós" e "é chegado entre nós". O Reino de Deus não é apenas uma realidade transcendente e futura, mas imanente e presente. Assim, os reformadores defendiam que o mundo nunca deixou de ser da esfera do governo soberano de Deus, mesmo que afetado como está pelo pecado, e que, portanto, a missão do Cristão no mundo é iluminá-lo (“assim brilhe a vossa luz diante dos homens...”), fazê-lo enxergar a Verdade segundo Deus, influenciá-lo sob todos os aspectos (culturais, morais, éticos etc) e com o máximo alcance possível com os valores do Reino. Eles entendiam que o cristão vive em "dois reinos", regidos por duas leis paralelas que o afetam, mas entendia também que a igreja está no mundo para conservá-lo em condições suportáveis de vida moral ("vós sois o sal da terra"), e iluminar suas trevas existenciais com a esperança revelada no Evangelho ("vós sois a luz do mundo"). Assim, o cristão não deve fugir de suas atribuições seculares, nem mesmo de cargos de governo, por considerá-los impuros, mas cada vocação deve ser santificada e entendida à luz de um chamado divino mais amplo. Calvino era tão firme nessa convicção que não conseguia ver diferença entre a importância espiritual entre a vocação do pastor, do jurista, do músico, do gari ou do filósofo, por exemplo. Não existem, para o cristão, algumas vocações santas e outras não. Todas se constituem em desafios ao seu testemunho. Quando estabelece a relação que o funcionário deve ter com o patrão, Paulo diz que eles não deveriam "servir à vista, como para agradar a homens, mas como servos de Cristo, fazendo, de coração, a vontade de Deus" (Ef 6.6). Em Cristo, Deus não retirou de sobre o homem o seu mandato cultural, dado em Gn 1.28-30. Cabe ao homem pôr ordem no mundo de Deus, cuidar do seu "jardim", e essa vocação precede a Queda.
Desta forma, o ministério que cada cristão desempenha na igreja é tão santo e bíblico quanto o que ele desempenha na política, na universidade, , na escola, no consultório, no escritório ou diante do seu computador, se essas funções forem desempenhadas com as motivações corretas – a glória de Deus. O desafio é levarmos as palavras do apóstolo às últimas consequências: “Assim, quer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus” (1 Coríntios 10:31).
Pr. Jônatas Vasconcelos
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